segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Clarice Lispector...

MEDO DO DESCONHECIDO

Então isso era a felicidade. E por assim dizer sem motivo. De início se sentiu vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta? Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz, e preferem a mediocridade.


DIES IRAE

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos todos semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior - vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.
E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se. Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo. Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre. E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera. (...).

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

João Cabral de Melo Neto... alguns poemas...

O MUSEU DE TUDO

Este museu de tudo é museu,
Como qualquer outro reunido;
Como museu, tanto pode ser
Caixão de lixo ou arquivo.
Assim, não chega ao vertebrado
Que deve entranhar qualquer livro:
É depósito do que aí está,
Se fez sem risca ou risco.



O FIM DO MUNDO

No fim de um mundo melancólico
Os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
Que ardem como o sol.

Me deram uma maçã para lembrar
A morte. Sei que cidades telegrafam
Pedindo querosene. O véu que olhei voar
Caiu no deserto.

O poema final ninguém escreverá
Desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
O sonho final.



O ARTISTA INCONFESSÁVEL

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
Mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
Que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
Que ele é inútil, e bem sabendo
Que é inútil e que seu sentido
Não será sequer pressentido,
Fazer: porque ele é mais difícil
Do que não fazer, e dificilmente
Se poderá dizer
Com mais desdém, ou então dizer
Mais direto ao leitor Ninguém
Que o feito o foi para ninguém.

VoLtEi... CoM aLgUmAs FrAsEs...

"Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer."

(Ítalo Calvino)

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"Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir."

(Paul Valéry)

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"Não consigo imaginar um único inimigo. Ninguém me interessa o suficiente para que eu possa odiá-lo."

(Paulo Francis)

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"O maior erro que um homem pode cometer é pensar no erro que vai cometer."

(Sêneca)

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"O futuro tem muitos nomes. Para os fracos, é o inatingível. Para os temerosos, o desconhecido. Para os valentes, é a oportunidade."

(Victor Hugo)

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"A verdadeira viagem não consiste em sair à procura de novas paisagens, mas em possuir novos olhos."

(Marcel Proust)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Anna Akmatova

OS MISTÉRIOS DO OFÍCIO

De que servem exércitos de canções
E o encanto das elegias sentimentais?
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado,
E não do jeito como todo mundo faz.

Se vocês soubessem de que lixeira
Saem, desavergonhados, os versos,
Como dente-de-leão que brota ao pé da cerca,
Como a bardana ou o cogumelo.

Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão,
O bolor oculto na parede...
E, de repente, a poesia soa, calorosa, terna,
Para a minha e tua alegria

(Anna Akmatova)

domingo, 2 de agosto de 2009

O que passou, passou?

Antigamente, se morria em 1907, digamos, aquilo sim é que era morrer.
Morria gente todo dia, e morria com muito prazer, já que todo mundo sabia que o Juízo, afinal, viria, e todo mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor, como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto, um lenço no vento, um suspiro e pronto, lá se ia o nosso defunto para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado, morrer era um tipo de festa, uma das coisas da vida, como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha. Sempre alguém tinha uma frase que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa. Pepino com leite, vento encanado, praga da velha e amor mal curado.
Tinha coisas que têm que morrer, tinha coisas que têm que matar.
A honra, a terra e o sangue mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer, nos idos de 1916, a não ser pegar pneumonia, e virar fotografia?
Ninguém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Quem mandou não ser devoto de Santo Inácio de Acapulco, Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba, tomou banho e foi no vento.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade, a ciência da eternidade inventou a crônica.
Hoje sim, pessoal, a vida é crônica.

(Paulo Leminski)

Guimarães Rosa...

"Toda saudade é uma espécie de velhice"

(Guimarães Rosa)

Millôr...

"Os uísques das nossas noites têm de ser pagos com o suor dos nossos dias"

(Millôr Fernandes)